Uma Perspectiva Revisionista Da História Do Aikido
Um dos nossos leitores me enviou uma página da edição da “International Aikido Newsletter” publicada em Dezembro de 1994. Parece-me que este boletim informativo é uma edição da Federação Européia de Aikido. Contém respostas de um shihan, 8º Dan, bastante conhecido, a perguntas postas por participantes num estágio de verão holandês, recentemente. Uma das perguntas era: “Porque é que a instrução do Aikido da academia central não inclui treino de armas?”
O conhecido shihan respondeu:
“Para compreender a inexistência do ensino de armas no Aikido temos que analisar a perspectiva histórica. No passado, na época do samurai, as artes marciais eram conhecidas como “kobudo.” O sabre era a arma do samurai. Um dos desenvolvimentos da arte do sabre era o “jujutsu.”
O Aikido pode ser visto, então, como o passo seguinte no desenvolvimento das artes marciais, em conseqüência da via do sabre, que já não serve para tirar a vida. A arma é, portanto, parte de um passo no desenvolvimento decorrente do passado. Aprender armas seria concentrarmo-nos no passado. Aprender Aikido é aprender o desenvolvimento mais recente.”
Fazendo a leitura do trecho acima, entende-se porque muita confusão resultou dos livros de Saito Sensei. Ele foi um aluno de O Sensei. Nos seus livros ele tenta, não tanto combinar Aikido com armas, mas preservar o conhecimento incluindo o treino e o estudo de armas.”
Editei parte desta resposta por forma a eliminar algum inglês confuso, mas a versão acima é fiel ao texto original que, presumivelmente, foi lido por milhares de aikidocas europeus, além das centenas que ouviram os comentários deste shihan, pessoalmente. Levou-me algumas leituras para compreender a verdadeira lógica subtil da resposta do shihan. A minha interpretação da sua visão é aproximadamente a seguinte:
O sabre, a arma do samurai, foi um instrumento de matança no Japão feudal. O jujutsu - formas “suaves” de artes marciais - tal como o Daito Ryu, desenvolveram-se da arte do sabre e são superiores em termos morais, pois não foram elaboradas para matar. O Judo é um exemplo desta tradição marcial “suave” e o seu fundador, Jigoro Kano, diz-se que admirou as técnicas de Morihei Ueshiba. O Aikido representa assim a “fase seguinte” no desenvolvimento das artes marciais e é superior à arte do sabre porque não se preocupa com matar. O estudo do sabre significa um passo atrás e não tem lugar no treino do Aikido.
Parece-me que a exposição anterior está fiel ao ponto de vista do Shihan.
Devo, com toda a franqueza, confessar que considero os seus comentários bastante perturbadores, por variadas razões. Vou deixar de parte o seu argumento vago da perspectiva histórica e a falta de definição de termos chave como “arte do sabre” e “jujutsu” que podem ser devidos à tradução e ao fato dos seus comentários serem dirigidos a uma assistência sem um conhecimento muito específico de história japonesa. Não sei se o shihan estava a expor o seu ponto de vista pessoal ou a posição “oficial” da sua organização. Na verdade, pouco me interessa.
Primeiro que tudo, no esforço de entender este importante assunto do papel (ou falta dele) do treino de armas no Aikido, o nosso ponto de partida deve ser a perspectiva do Fundador, Morihei Ueshiba. Será ilógico sugerir tal? O Fundador concebeu o Aikido como um sistema marcial integral, baseado nos princípios da arte do sabre. O Aikido moderno era o produto de anos de treino intensivo e meditação no isolamento de Iwama depois da 2ª Guerra Mundial. Já escrevi detalhadamente sobre este assunto no meu artigo “Overview of Aikido History” contido no livro Takemusu Aikido-vol.1, para aqueles que quiserem saber mais sobre este assunto.
O currículo do Aikido consiste em centenas de técnicas sem armas (taijutsu) e numerosas técnicas de aiki ken e jo. Estas técnicas estão completamente inter-relacionadas e são inseparáveis em termos de teoria e de execução. O sabre - alma do samurai - é transformado no Aikido em katsujinken, ou “sabre que dá vida”, e foi usado constantemente pelo Fundador na sua prática diária e em demonstrações. Além de que o Fundador usava o sabre como metáfora para representar um instrumento de amor e compaixão, considerando-o parte do “grande desígnio” do kami (kami no shikumi). Resumindo, o sabre era essencial ao conceito básico de Aikido do Fundador e não pode ser separado dele sem que se devaste a essência das suas profundas crenças.
Depois de dito isto, deixem-me clarificar o que pode ser facilmente mal entendido. Não tenho qualquer objecção seja do que for para quem quer que seja - o shihan, ou qualquer outro professor de Aikido - que opte por não usar armas no seu treino ou instrução de Aikido. É uma decisão pessoal. Mas oponho-me fortemente a quem quer que seja que tente deturpar o conceito de Aikido do Fundador, afirmando que o sabre não tem lugar na sua arte. Isto é absolutamente falso e a verdade pode ser facilmente encontrada através de um estudo dos escritos, filmes, fotografias, palestras, e da abundância de evidências históricas, que ainda existem, do Fundador.
As afirmações do shihan, em relação a Saito Sensei, também merecem um comentário. Saito Sensei escreve claramente nos seus livros que o taijutsu e as técnicas de aiki ken e jo são todas umas só em essência e baseadas nos princípios do sabre. Uma vez que isto é o contrário do que o shihan descreve, do conteúdo dos seus livros, não admira que “tanta confusão” se tenha gerado!
O que pensarão os possuidores dos livros técnicos de Saito Sensei e o os seus alunos, por todo o mundo, de tais afirmações públicas por parte de um shihan tão elevado?
O Aikido Journal tem, ao longo dos anos, sido criticado pela sua excessiva focalização em assuntos históricos. Por outras palavras, concentrarmo-nos no passado não é positivo por que o que temos hoje é o último, e melhorado, estado de um processo evolucionário. Bem, se isto significa que algum dos shihan, do Aikido atual, ultrapassou Morihei Ueshiba em termos de habilidade, então o assunto está aberto à discussão. Em tempos, deixei claro aos meus colegas que considero a pesquisa das origens e dos anos iniciais da arte muito mais absorventes que o período atual, devido à incrível habilidade e vidas épicas das primeiras personagens como Morihei Ueshiba, Sokaku Takeda e Yoichiro Inoue.
Menos óbvio, provavelmente, um conhecimento de história pode funcionar como um guia para avaliar o caráter humano atualmente. Por exemplo, pode-se aprender bastante acerca da honestidade e intenções de indivíduos ao observar como eles descrevem acontecimentos antigos e os floreiam para seu próprio interesse. A desinformação em relação a acontecimentos históricos pode circular indefinidamente, e acabarem por ser aceites como fato, quando as pessoas estão mal informadas. No domínio do Aikido, o Aikido Journal tem e tentará sempre remediar esta situação, oferecendo aos leitores uma abundante quantidade de material sobre o assunto, providenciando assim informação suficiente para que cheguem às suas próprias conclusões.
Concluindo, não esqueçamos os ensinamentos do Fundador e o propósito da obra da sua vida. Somos todos livres de fazer do Aikido o que quisermos, e de deixar a nossa criatividade fluir à vontade. No entanto, devemos parar de tempos a tempos para contemplar o ponto de partida da nossa arte e respeitar sempre os seus princípios essenciais.
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por Stanley Pranin- Aikido Journal #104 (1995)
Traduzido por Pedro Escudeiro- Lisboa- Portugal