O Aikido e meu caminho ou torçendo pulso da galera

Paulo Paiva

"Se as portas da percepção estivessem livres, tudo se mostraria ao homem como é, infinito." -- (William Blake)

Resolvi escrever este pequeno texto porque creio ser importante a divulgação de idéias e opiniões que me são caras, advindas de um doloroso processo de aproximações sucessivas à minha verdade pessoal, e que espero possam servir de baliza a outros Semelhantes.

Começo quase no começo, pela minha adolescência, desde quando temperado por hormônios em profusão e a vontade tão fora de moda de mudar o mundo, busco o sentido da existência humana e o entendimento de minha relação com o universo (!). Sei que é uma empreitada e tanto, mas na época eu achava que tinha a eternidade à minha frente e mais tarde percebi que esta é uma busca inerente ao meu modus vivendi.

Fui criado como católico e me tornei ateu, li muitos livros materialistas e ficava horas discutindo com meus amigos em um bar qualquer sobre política, anarquismo, socialismo e capitalismo. Essa fase passou quando percebemos que nenhuma garota ficava muito tempo perto de nós (Paulo Francis dizia que se a Vera Ficher fosse do Partido Bolchevique, não haveria a revolução russa, pois Lênin e Trotski ficariam disputando o direito de namorá-la). Um dia, um amigo me deu uma Revista Planeta sobre Buda e eu fiquei tão impressionado que passei a ler sobre zen budismo, misticismo cristão, hinduísmo, taoísmo e outros ísmos. Daí passei a um outro estágio, onde falávamos tanto sobre a eliminação do ego e da percepção do agora que passamos a chamar essas coisas de “aquelas coisas”. Tipo: “Pô cara, porque cê tá assim?” “Ah meu, cê sabe, aquelas coisas...”. Isso dava uma agradável sensação de resignação diante da depressão por não termos ainda atingido a iluminação, o satori. Depois de um certo tempo, cansei de tourear com meu ego e passei à vida prática, no sentido ocidental do termo, concentrando mais em meu trabalho como engenheiro civil e posteriormente como gestor ambiental. Porém, nunca deixei de buscar a transcendência de minha condição circunstancial, o que me levou recentemente à psicanálise, uma arte que tem como objeto providenciar lugar, ambiente e apoio para que uma outra pessoa saiba aproximadamente quem ela é, pelo menos para que possa fazer suas escolhas sem tanto sofrimento (continuo um taoísta...).

Este pequeno resumo do meu background existencial é uma introdução importantíssima para referenciar a minha interpretação pessoal do Aikido. Conheci-o por meio de um outro amigo que fazia artes marciais e fiquei impressionado com suas demonstrações de eficácia da técnica, quando ele torceu o pulso de toda a galera. Acabei começando a treinar na Segmento Dojo, com o sensei Ivan, buscando uma malhação que fosse legal, pois eu tinha passado pela natação, musculação, capoeira e ginástica e ainda não tinha encontrado algo que realmente me empolgasse. Entrei com esse espírito e hoje o sensei conta que imaginava pelo meu comportamento que eu fosse parar dentro de pouco tempo, tamanha a falta de jeito, que me levou à caixinha de primeiros socorros várias vezes.

Eu nunca tinha feito uma arte marcial japonesa, mas estava recheado daquele papo de filosofia oriental. No entanto a compreensão de fato só nasceu por meio da prática, demonstrando mais uma vez ao intelecto que a realidade não obedece exatamente aos seus estratagemas, pois quando percebe-se é. Em um relance, enquanto eu estava sendo atacado por vários companheiros, passando por grande dificuldade, veio à minha mente a constatação: o zanchin – ou atenção, para os não iniciados - é minha porta de entrada para o Aikido e para a melhoria de minha vida!

A atenção a que me refiro não é que a utilizamos para atravessar uma rua, mas sim uma forma de meditação, que envolve a percepção de cada aspecto do nosso quotidiano. No entanto é complicado “prestar atenção”, pois implica em fugir dos pré-conceitos de nossa mente, nutrida em uma cultura que preza mais o símbolo do que a coisa em si. Que coloca um véu defronte nossos olhos. Lembro-me que Aldous Huxley, mais conhecido por ter escrito o profético Admirável Mundo Novo, escreveu também A Ilha, sobre uma sociedade utópica onde ciência e religião interagem em harmonia. Alguns membros dessa comunidade treinaram um punhado de papagaios para ficarem voando pela ilha gritando: Atenção! Agora! Atenção! Agora! Para sempre lembrarem aos ilhéus que existe uma realidade acontecendo a cada momento e que ela é diversa das ilusões criadas por nossa mente. E neste ponto, pois um pensamento reflete em outro, recordo-me também de Thich Nhat Hanh, um monge budista coordenador de um centro de meditação na França, objeto de grande peregrinação. Quando perguntado sobre o que ensina, ele diz: “Só ensino duas coisas aos que me procuram, a ter paciência e a ter atenção”. Aqui insiro ademais a importância da paciência, pois como podemos atentar ao que nos cerca se não cultivamos a paciência de contemplar uma paisagem, de falar com uma criança, de chegar a um destino, de ler um livro grosso, de caminhar a esmo, de esperar o momento do golpe?

E como posso conhecer a mim mesmo, objetivo tanto da psicanálise quanto, num nível mais profundo, da arte marcial, caso não tenha atenção e nem paciência? Somente por meio do auto conhecimento atinge-se a felicidade, e dela não existe uma receita universal. Pois se existisse tal receita, não seríamos indivíduos.

Voltando ao que percebo nos treinamentos, considero que eles são um simulacro emoldurado da nossa vida, pois a todo momento estamos sendo solicitados a prestar atenção naquele movimento de pulso, na postura do sensei, no companheiro novato, na direção da queda, na inércia, na posição dos pés e tudo ao mesmo tempo agora, sem se desesperar! E também temos de ter paciência para que o pensamento não dispare à frente do momento, divagando ou se antecipando. Segundo uma preleção feita em aula, no aperfeiçoamento do Aikido existem três níveis: o físico, o mental e o espiritual, os quais são percorridos numa seqüência temporal e cumulativa. Primeiramente temos o nível físico, onde ao praticante só resta repetir movimentos à exaustão. O nível mental é atingido quando o pensamento aprende a interpretar o movimento. Depois, quando o praticante conseguir casar o pensamento com o momento, estará mais próximo do nível espiritual. Mas este só será atingido quando o pensamento não for mais necessário para agir, o que só é possível aos que não tem dúvida, pois todo pensamento é, no fim, uma pergunta.

Espero adquirir a atenção e paciência necessárias para que eu não fique somente no nível físico / mental, no qual hoje estou após pouco mais de dois anos de aprendizado. Sei que o caminho é longo e difícil, mas não haveria realização ou felicidade se não fosse dessa maneira, não é mesmo? E aqui despeço-me, agradecendo aos leitores que chegaram até aqui e que seus caminhos, dentro e fora do dojo, sejam iluminados! Sayonara!

há 20 anos 5 meses