Retomo este assunto por ver certas atitudes de alguns grupos querendo se aproveitar da falta de iniciativa das pessoas em estudar para promulgar mentiras e desinformação na net.
ENTENDENDO KORYU BUDO
As pessoas tem dificuldade em entender um aspecto muito importante: o contexto original das artes marciais clássicas (koryu budo).
Para simplificar, vou usar Ono Ha Itto ryu-OHIR como exemplo. Ono Jiroemon Tadaaki foi o primeiro soke (herdeiro da escola), sendo o sucessor de Itto Ittosai. Por alguma razão(desejo de aparecer ou por achar que havia acrescentado ou subtraído algo de significativo) ele acrescentou o sufixo “Ha”(ramificação) e seu nome, indicando que algo havia sido alterado.
O estilo Ono ha Itto ryu era ensinado/treinado no seguinte contexto:
- Samurai portam espadas; eles devem saber o fundamental de seu manejo.
Tenham em mente que samurai tinham ocupações, portanto não podiam dedicar longos períodos de tempo ao seu treinamento. Meses às vezes eram “longos períodos”.
Neste contexto, “kenjutsu” era similar à nossas auto-escolas. Alguns meses de aula e você era considerado, por seu sensei, munido do fundamental. Eventualmente alguns alunos se interessavam pela carreira de instrutor de espada profissional; estes era tratados como casos especiais. Mas em termos gerais, uma vez munido dos princípios, você estava ”liberado para as ruas”.
“Ittou Mantou” ou “uma (técnica) espada dá origem a dez mil (técnicas) espadas”, trata-se do princípio no qual o estilo se desenrola.
Em poucas aulas não dá para se abordar todas as possibilidades de técnicas ou situações em uma batalha; o máximo possível é apresentar técnicas simples, fáceis de memorizar, numa progressão pedagógica que leve o praticante a intuir outras possibilidades. As técnicas avançadas e secretas são variações da técnica básica.
Ensinar a escola, no entanto trata-se de uma situação diferente.
Deixados por conta própria, alunos tendem a errar por preguiça em COPIAR O SENSEI.
O manejo de espadas não é um ato natural. Ele se assemelha ao uso de hashi (pauzinhos).
Quem nunca derrubou a comida ou esmagou o (maki) sushi nas primeiras tentativas? Isto ocorre por falta de uma série de habilidades motoras (equilíbrio, tato, força, coordenação fina). Para que aprendamos, primeiro temos que imitar a forma de segurar (o hashi), depois treinamos mover coisas leves com formatos fáceis (brócolis!) por pequenos trajetos e com a mão embaixo (para o caso de perdermos o contato). Com o tempo somos capazes de comer pipoca!
Caso o “iniciante” em “hashi-jutsu” resolva usar uma”pegada” diferente da tradicional, a técnica também irá mudar. Embora talvez seja eficaz (consiga levar a comida à boca) ela não será tradicional, pois não espelhará o método tal como este foi transmitido ao longo de gerações.
Relevância disto: o praticante de hashi jutsu não poderá apresentar sua técnica como ”japonesa”.
Voltemos à Ono ha Ittou ryu. Um aluno não teria apenas que ser bom lutador; ele precisaria ser bom DENTRO DA FORMA TRADICIONAL DA ESCOLA, caso contrário seria como dizer que Rickson Gracie deveria suceder Ueshiba por ser bom nos ringues (eficaz, mas diferente).
Ser tradicional significa expressar não só na técnica, mas em todo o seu comportamento, a “personalidade” da escola. Isto só vem depois de vários anos imitando seu sensei e alguns meditando sobre o que é a escola e o que são idiossincrasias de seu mestre. A idéia é que o ”espírito” seja transmitido de geração a geração.
Exemplo de deturpação:
No movimento “sassen” da escola Hyoho Niten Ichi ryu- HNIR (*) a mão esquerda é deixada “caída”.
Em outras escolas existem movimento similares, mas nelas a mão esquerda é levada ao koiguchi da saya.
Por que apenas na escola HNIR (*) é diferente?
Bem, talvez o jeito certo fosse o que está presente nas demais escolas... em algum momento da escola pode ter haver existido um mestre com o braço esquerdo fraco, ou machucado ou com encurtamento de ligamentos que não conseguia fazer “do jeito certo”...talvez algum soke tenha aprendido errado e a forma errada acabou se perpetuando em função dos alunos temerem questionar o mestre...ou talvez exista uma boa razão para que a mão deva ser deixada pendendo.
O problema é: eu não sei.
Uma vez que o aluno não sabe, ele deverá imitar seu sensei e deixar o braço esquerdo pendendo, até o sensei dizer que “sua forma está correta”; à partir desse momento (em que se sabe que está se fazendo o ”certo”) deve-se perguntar “por que diabos tem que ser diferente das outras escolas???”. (Texto adaptado de E-Budo).
Agora digamos que você treina HNIR (que anda de forma natural, ereta) e também treina Kashima Shinryu (que anda com a base aberta, baixa e corpo levemente inclinado); você terá que imitar duas formas diametralmente opostas, criando “compartimentos de memória” completamente isolados um do outro. Ou você treina Ono ha Ittou ryu e também HNIR; bases similares, mas com razões diferentes. Similar não significa igual. E como as diferenças são sutis, a tendência é que você não reconheça que está errando e jogue os ensinamentos de uma escola contra os da outra (“Meu sensei de Ono Ha disse que o certo é deste jeito.”). E se atrasará em ambas.
Agora digamos que você treine algumas aulas uma ou duas vezes por ano no Japão, fazendo simultaneamente HNIR, Katori Shinto ryu, Shinto Muso ryu (que já inclui em seu currículo Ikkaku ryu, Isshin ryu e Shinto ryu), e Suio ryu... embora você tenha apenas conhecimento superficial, ensine estes estilos misturados dentro de uma só aula e colocando seus alunos para “aplicar em combate” (usando bogu e shinai), usando regras de segurança que necessariamente mudam aspectos técnicos.
Este “yakissoba ryu kenjutsu” seria ruim?
Provavelmente...
Seria tradicional ou “oficial”?
Em hipótese nenhuma!
DISTINGUINDO GRADUAÇÃO DE LICENCIAMENTO
Embora usemos o termo “graduação” (ranking), este é inadequado para koryu budo. E é neste ponto que muita da confusão se sustenta.
Graduar é estabelecer graus baseado num desvio padrão. Compara-se os praticantes e definem-se quem é mais e quem é menos. Esta era a conduta no Judo ou Kendo do século XIX; através de rendimento em competições se estabelecia um RANKING (graduação) visando nivelar competidores para evitar lutas desequilibradas.
Em koryu se utilizam licenciamentos, onde se estabelece que determinado aluno domine satisfatoriamente uma porção (ou a totalidade) do currículo e está qualificado a ensinar, mesmo que ele não seja o melhor lutador.
Muitas vezes um excelente atleta (ou guerreiro) pode ser um péssimo professor, exatamente em função das suas qualidades de guerreiro. E às vezes um guerreiro mediano pode ser capaz de ensinar muito bem. Sabendo disto os mestres de koryu souberam distinguir as coisas.
É por isto que, ao contrário do que ocorre em Gendai Budo, num koryu você pode treinar a vida toda, ter uma técnica excelente e ainda assim jamais receber uma licença de ensino.
Desculpem o volume de informação.
Renato Usagi
(*) Errata: No meu post "Critica a moda Koryu" eu faço um comentário sobre a posição da mão no kata da escola Hyoho Niten Ichi ryu. Eu me atrapalhei na época em quê escrevi, pois a escola citada originalmente no texto que serviu de base era Yagyu Shinkage ryu.